segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Cidades I

Uma mulher bêbada de amor no beco dá bola e é enrabada com violência delicada.
Ato contínuo são flagrados sentados a beira mar olhando juntos as luzes piscantes da noite, ela com os braços na cintura dele, provocava em seu coração um incêndio tornando a praia vermelha.
As palavras que ele lhe sussurrava no ouvido envolviam a cintura de seu coração de fêmea e encharcavam os olhos de água salgada do mar, uma misteriosa emoção invadia os corpos e os corações fazendo-os derrapar na curva da razão. Na exuberância distraída do seu corpo ela acolhia a sensação da presença de um homem cortês, atento e próximo da alma selvagem que a habita na superfície da epiderme, enquanto ele encostava ingênuo o gargalo da garrafa de água gelada no contorno do bico do seio escondido sob a blusa. Uma felicidade rara, bela e fulgurante, exalava deste contato como a explosão de fogos de artifício no céu escuro das noites de festas e gozo.
A única coisa que ela desejava era ter a libido dedilhada na pedra do sal, lugar mítico, sensual e misterioso como a cidade reinventada na virilidade da pegada de menino, mão que resvalava na devassidão do relevo rebelde e sujo dos becos entre as suas coxas de pedra... Mas de repente ele recuava e como um titereiro a deixava suspensa nos fios que moviam o  desejo, como se fosse o fiel executor de um contrato masoquista, a inundava das pulsões que a interrupção do prazer destilava e que a aprisionavam para sempre aos caprichos do amor.
E ela se abandonava assim indefesa e capturada à presença dele, entre os altos e baixos da cidade revelada por becos que clamavam o despudor e embebiam na devassidão úmida  das arestas polidas pelo tempo os corpos atravessados pelos excessos – corpos excitados.
E diante do tribunal do sal lavro a sua confissão de amor incondicional à cidade e de total rendição à sedução que a aprisiona pela força do encontro amoroso que se dava nas cloacas dos becos malditos e mal afamados do seu coração de menina.

domingo, 28 de novembro de 2010

Histórias de mulher I [aflições]

A história lhe cobria o corpo com o pudor da fantasia e a desfaçatez do desejo. Era um duelo entre iguais no tatame das caligrafias. E ela se agarrava às palavras como um náufrago ao pedaço de madeira que acredita o fará resistir até morrer ou ser resgatado, o que nesta situação é o mesmo apesar de não ser igual. Mar adentro ela abocanhava a história que só podia ser contada se, com a arma da imaginação, fosse capaz de invadir o corpo a corpo e fazer tal arruaça que dele fizesse brotar um corpo sem órgãos. Corpo indômito e preparado para experimentar a sensação limite da história que imaginava lhe tatuar com a agulha fina do destempero da paixão.
Aflita eu olhava a cena com a caneta na mão.

Por fim a história lhe era inscrita no corpo por um habilidoso calígrafo, capaz de provocar suspiros e fazer escapulir o gozo, represado nos confins da imaginação erótica, guardada a sete chaves na gaveta do esquecimento. Sob a grafia deste calígrafo artesão ela via sua pele se encher de prazer e tremer levemente diante da alegria que atravessava o ventre, os mamilos e os lábios – da boca e da vagina, em pequenas [e sucessivas] mortes.
Ela segurava suavemente o pincel entre contrações ritmadas pela perda da noção de tempo, pelo debruçar-se sobre a beira do precipício do prazer arredio que como um cavalo selvagem se aproximava para roubar o torrão de açúcar do líquido viscoso que lhe escorria no meio das pernas.
Aflita eu respirava ofegante sob os lençóis.

Enquanto isso ela buscava ávida a perfeição da caligrafia e a precisão dos significados das palavras desconexas entre as tramas da escrita, tramadas como armadilhas, para serem decifradas ou executadas no paredão do silêncio, de joelhos e com os olhos vendados. Era o sacrifício que ela aflita preparava.

Um encontro é como deparar-se com o mistério de um iceberg, este imenso bloco branco azulado, escondido sob a superfície abissal do mar. A parte visível sempre infinitamente menor do que a que se oculta sob a fantasmagoria plácida, silenciosa e fria da superfície corpórea que se expõe como um convite à navegação no que chamamos de (a)mar.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Carrinho de frete na Lapa. Foto de Hugo Denizart
Foto fretar a Lapa.


Quem, como eu, chegar desavisado ali no Largo da Lapa, talvez não perceba a densidade do ar rarefeito que a historia local insufla, cadenciada pela sucessão da dupla arcada do aqueduto monumental. Nem vai saber que até 1790 – nos tempos do vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa – no Rio de Janeiro, não existiam ainda o Passeio Público, nem as ruas do Passeio, das Marrecas e da Lapa. Perceberá diferenças se chegar por ali de dia ou de noite, se na segunda ou na sexta, para assistir a um show, tomar um chope, trocar um pneu, almoçar, assistir a uma missa, fazer uma aula de balé ou de música, ouvir um concerto, encenar um texto, atrair um cliente, participar de uma roda de capoeira ou estar de passagem. A cada situação uma Lapa diferente se desnudará, como uma mulher que a cada encontro se apresenta com roupa, maquiagem e atitudes distintas.
Mas será diferente também se nos aproximarmos dela sempre na mesma hora do mesmo dia, como a buscar o habitual, a repetição, os iguais. Encontraremos a diferença na repetição. A Lapa é transitória como a lua e nômade como povos ancestrais -- fantasmagorias que nos  espreitam  detrás de cada recanto mal iluminado pela razão. A Lapa é um Aleph[1] no olho da cidade, primeira letra do alfabeto da língua sagrada ou abertura microscópica através da qual podemos enxergar todo o universo.
Se o calor for grande ou a sede mortal e o sol já tiver capturado as insinuações de que a noite se aproxima é possível nos sentarmos num dos conjuntos de cadeiras plásticas arrumadas sobre o calçadão da rua Visconde de Maranguape, em torno de um isopor cheio de cerveja e refrigerantes gelados e uma chapa quente onde sanduíches são preparados de acordo com o gosto do freguês.
Ali sentado, diante do vazio do largo da Lapa, uma falsa fachada te espreita, pintada como um tromp l’oeil, - um engana-o-olhar enquanto você degusta um engana-a-fome -, sobre a empena cega, descoberta e posta a nu por demolições que o tempo apagou. Por alguns instantes ou depois de muitas cervejas, o tromp l’oeil parecerá mais real que a própria realidade da Lapa e a vista, enganada pela perspectiva desenhada sobre a parede, poderá desfrutar de um conforto visual, ainda que a imagem seja apenas uma citação, uma alegoria.
No espaço desterritorializado pela ilusão dos jogos de luzes, a Lapa é vermelha, imperfeita e mambembe como um carrinho de frete empurrado por um homeless – meio clown meio mendigo,  coração tatuado a ferro e fogo pela agulha suja da vida. Um carrinho atulhado de tralhas e lixo, feito de pedaços de madeira para guardar as fantasias dos brinquedos infantis e do sonho de ter um quarto mobiliado como o da fotografia colada no carrinho.
O sonho do quarto arrumado é uma imagem imantada na literalidade provisória do morador de rua, o catador de lixo, o que freta o nada para lugar nenhum, e que da borda marginal da cidade acalenta desejos tão humanos como o de trocar dormir na rua por uma cama coberta de lençóis brancos.
O carrinho de frete, metáfora da cidade, é o lugar que abriga o universo infinito da vida de um homem, mesmo quando lhe tiraram quase tudo – casa, trabalho, roupa e comida – mas não lhe tiraram a capacidade de fabular e circular pela cidade. Posse definitiva que se afirma no livre caminhar pela rua, no levar e trazer do frete interminável de uma carga inútil que não se destina a ninguém, carga em que restos e sonhos são a mesma coisa.
A Lapa é o lixo recolhido no relicário de um carrinho sobre rodas de rolimã, fábula de uma pintura gasta e manchada, objetos quebrados, restos usados onde a leveza branca de uma renda de filó explicita que há lugar para sonho e fantasia naquela caçamba predestinada a carregar apenas detritos. Assim é a Lapa: frete de ilusões.
Quantos mundos cabem no clique instantâneo de um olhar?
Quantos planos se sucedem na perspectiva polifônica de uma cidade partida? O excesso é efêmero como o nada, tem a densidade do silêncio que grita. Este lugar mágico de sínteses incômodas e cheias de beleza. Planos imperfeitos nos quais as sucessões de imagens e afetos nos dão a impressão de serem jogos de espelhos, onde eu te espelho ao me espelhares e os dois já somos outros na travessia do canteiro central iluminado por um arco-íris sob o qual meninos viram meninas e vice-versa. Vago travesti.
A Lapa erra incerta na corredeira da borda do abismo. Na Lapa só se vive uma vez e para sempre no transitório das passagens fugidias que cada um nela experimenta. Ficar na Lapa é ver o tempo passar imóvel e imperial e perdê-lo para sempre sem o roteiro proustiano de sua redescoberta. Na Lapa, redescobrir dói como uma ferida em carne viva, melhor esquecer, como faziam os boêmios nos braços despossuídos das prostitutas perfumadas de Madame Gaby. Vago permissiva.
É o lugar do encontro com o poeta amador que habita as nervuras nervosas do entre arcos, enquanto o show da vida não começa e um alto-falante inunda de ruídos a calçada esburacada. Ruídos de solidão, ruídos de amores perdidos, ruídos de desilusão, ruídos mentirosos, ruídos polifônicos, ruídos sujos, ruídos despojados – ruídos. Arte de poetar entre a sarjeta e o céu que a bailarina trapezista promete desafiar do alto do moderno arranha-céu. Só o poeta pede bis e goza gostosamente a vertigem da queda. Vago inerte.
Mais adiante, uma insólita instalação de objetos roubados ao lixo marca o lugar de cada um na fila do sopão, desilusão da comida aguada sob a maior obra de engenharia do século 18 que por ironia da vida servia para abastecer de água a cidade – o aqueduto monumental. Sob os Arcos da Lapa oferece-se água aos mendigos infames e famélicos, não para matar a fome, para redimir dos pecados que devem jejuar até a morte.
Fratricídio e piedade sob a lápide do arco de tempo que tramando coisas do arco da velha constrói uma armadilha para os incautos transeuntes que velam pela Lapa. Vago impune.
Uma religião incógnita circula pelas ruas, becos e vielas. A crença no amor romântico oferecido em paus que esporram peitos e amamentam leitos disformes na conformidade de ser duplo – travesti  –, a rua subverte a ordem enquanto ultraja desejos na espuma branca das areias de Espanha distantes. Vago errante.
A cidade feita de vários planos fretados da realidade desvendada pelos olhos atentos de um voyeur injeta seus fragmentos na minha veia. Nada acontece. A droga parece ser inofensiva diante da urgência das sensações, diante da espreita do poeta amador. Já estou quase desistindo da viagem induzida quando o olhar travestido de esquina da Lapa acena da borda do abismo para que eu me aproxime. Desconfio: será que este é o início da viagem? Aquieto meu coração e me aproximo da esquina fatal onde me deixo seduzir pelo desvio inevitável no curso da cidade. Ali o mundo se bifurca e eu escolho o atalho sombrio da esquerda, pavimentada por luzes escassas e convites irrecusáveis. Deslizo na direção masculina do desejo flertando com sensações que me parecem divertidas e insólitas dentro da cena noturna na Lapa. Percebo nacos de amor amassados junto com o lixo varrido das mesas dos bares e com os olhos suplico ajuda ao poeta rendido de tanto amar a dor. Vago tentada.
Vasculho a ambigüidade como condição de acesso ao mundo obsceno dos lugares que misturam memórias sutis e perspectivas de futuro lavadas – estamos fora da cena e podemos experimentar os atalhos que a cidade, tão generosamente puta, nos oferece. Penso ainda, antes de dar o próximo passo, qual será o preço desta aventura? Ninguém cobra o ingresso, ninguém vigia a entrada para o cadafalso. É uma aventura só para os incautos e minha alma encantada pelo efeito tardio da droga injetada nos poros abertos com que farejo a cidade nela se perde, feliz como um pinto no lixo. Vago perdida.
Uma cidade a meia luz mais se oculta do que se revela, a não ser que eu opere em negativo toda a experiência do corpo e do afeto embebido no álcool acético da travesti visceral que rebola na minha frente, sob luzes amareladas, como se fosse uma mariposa hipnotizada pelo fascínio do brilho de cristais da cidade.
A calçada arqueada à minha frente é uma sucessão de frontarias, ranhuras pétreas e arabescos férreos. Planos horizontais e visadas verticais confundem o olhar preso a uma iluminação paralela dramática,  de ponta-cabeça onde as sombras cobrem o branco dos olhos e cegam os sentidos expostos a desejos não catalogados pela lista da libido oficial.
Procuro uma cidade que me ofereça a verdadeira grandeza de sua entrega e não me contento com um cardápio self service grávido de cópias imperfeitas da culinária engendrada na reprodutibilidade digital das franquias que  proliferam como ratos pela cidade. Vago faminta.
Encontro várias cidades. Provo de cada uma seu doce e seu amargo. Inalo perfumes, suores e fedores. Nas altas horas da madrugada a única coisa que desejo é ser recolhida, como um objeto usado, pelo carrinho de frete do anônimo fotógrafo catador de lixo e adormecer sonhos suicidas entre os lençóis e os filós que envolvem a boneca da minha infância perdida, para sempre, nas ruas da Lapa.”

2007.



[1] “un Aleph es uno de los puntos del espacio que contiene todos los puntos” (P. 623 – Obras completas de Jorge Luis Borges – 1923-1972, Buenos Aires Emecê Editores, 1985)
N.E.: a foto publicada na abertura deste texto é do fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart.