quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Alma nua

O vazio vaga em mim
como uma alma penada.
A alma vaga em mim
como um vazio.
O vazio pena na minha alma.
A vaga alma em mim o vazio.
O vazio alma penada.

Reentrância de vazio.
Reincidência.
Caverna da alma, amores.
A alma traída destila vazio
Corpo ventre vaso
Continente oculto na vaguidão.

domingo, 11 de setembro de 2011

Dizer de mim

Dizer de mim o que não sei. Dizer.
Desdizer de mim o que não sigo. Contramão.
Enigma de mim o que desperdicei. Prazer.
Entender de mim o que senti. Traição.
Gritar de mim o que doía. Insensatez.
Sussurrar de mim o que amei. Ardor.
Murmurar de mim o que desejei. Cantiga.
Soar de mim o que transpirei. Loucura.
Arrebatar de mim o que guardei. Violação.
Vagar em mim o que possuí. Peregrinação.
Tatuar em mim o que cicatriza. Golpe.
Machucar o nervo. Tatuagem.
Recolher em mim o que sobrou. Destroços.
Respirar em mim o que expirou. Naufrágio.
Partir em mim o indivisível. Haraquiri.
Parir em mim o que não quer nascer. Florir.
Interromper em mim (o que quer seguir). Aborto.
Esculpir com desejo a dor. Sade. Esculpir a dor com desejo. Masoch.
Cultivar o belo. Narciso. Desejar o belo. Adriano. Desafiar o belo. Samurai.
Penetrar o vazio mortal. Necrofilia.
Desejar o selvagem (em mim). Zoofilia.
Não desejar a mulher (do próximo). Misoginia.
Navegar o mar intempestivo. Cais.
Viver o hiato da morte. Equilibrista.
Transgredir em mim a lei. Volição.
Afrontar a fronteira. Derrisão.
Vasculhar a lixeira. Desilusão.
Chafurdar na lama. Perversão.
Perdoar o crime de amor. Ilusão.
Esquecer a desilusão. Fantasia.
Matar o amor. Impulso.
Amor que mata. Inesquecível.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Infame lua

Levanta-te sobre mim infame lua de âmbar e arrebata meu corpo demente de tanto desejar. Carne viva que o amor esculpiu no amalgama de sangue e osso do meu corpo vão, de mulher malsã. Ergue no escuro do desvario da noite a bandeira desfraldada do meu coração e abençoa com sombras os pecados cometidos pela insensatez.
Escorre branca lua a tua altivez na minha retina insone de tanto sonhar. Entranha no meu passar vagabundo as lantejoulas do teu reflexo; espelho convexo: me deforma enquanto me devora.
Ofereço em sacrifício o meu deleite de te espreitar, banha de prata o meu ardor, pesar e amor, a minha dor. A placidez intransigente do teu reflexo movente sobre o mar, a trajetória intempestiva do teu desejo na paisagem do meu corpo são como faróis em alto mar a guiar a pulsão sem destino. Desenha com a linha incandescente do teu brilho uma tatuagem etérea no filó da cortina que me esconde de ti. E afaga destemida a minha libido de bicho no cio.
Acasala comigo nesta estranha comunhão excomungada e lésbica do grão de areia com o mar, do seixo rolado com o rio, ilumina a centelha da palavra que calo e usa o teu chicote para me fazer gritar até que a morte me silencie e um gozo profundo e aquoso nos una e faça boiar sobre o arrepio que o vento provoca no escuro profundo do mar.
Lua meu fel. Mel que a língua roubou do teu ventre. Tremor de lua e sombra na proa do navio fantasma. Farrapo de vestido de noiva e flores murchas. Tantas lembranças a tua presença afugenta de mim. A tua luz me revela o escuro de mim mesma e a fada revoa feiticeira pelas bordas esfumaçadas de ingênuas nuvens que em vão tentam esconder a tua nudez e o meu despudor.
Oh, lua se me escutasses! Se ao invés de enfeitiçar o meu olhar me desses os ouvidos eu te encantaria como a uma serpente venenosa para que me destilasses o teu veneno até a última gota , e dele eu fizesse a tinta escura para tatuar o meu coração com a agulha da desilusão.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Amendoeiras

As amendoeiras estão vermelhas de desejo. Sonham a gravidez da primavera. Esparramam pelo chão o tapete de gala para receber a fertilidade passageira e vã das estações.
As amendoeiras tramam nas minhas retinas como estranhas parteiras filhos que a terra há de parir e comer. Pura desilusão que o tempo despetala no coração.
O sol brinca feito menino entre as folhas sedutoras das amendoeiras que se exibem faceiras diante da placidez azul e atônita do inverno do teu olhar.
As amendoeiras desafiam indiferentes e altivas cada passante que por elas erra sem poder possuí-las. É o cativeiro do vagar na aridez do desejo.
Pulsões embalsamadas em folhas secas desperdiçadas pelo chão, seiva despudorada e outonal que escorre na dança diáfana do cisne que morre.
Ejaculação e transfusão se misturam em húmus fértil e adocicado como o cheiro de perfume barato e batom vermelho que enfeita o decote da puta entediada, sentada de pernas abertas, explícita e vulnerável sobre o tapete vermelho estendido no asfalto esburacado do meu coração.
Não há cura. A patrulha chegou meu amor. Melhor vestir a roupa de domingo. Enquanto isso o gari varre as folhas esquecidas do outono para baixo do tapete da solidão.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Oceano meu

Guardo o oceano dentro de mim e a travessia. Aprendizado de marujo, do que inventa porto em cada encontro e de cada partida um saber se lançar. Navego águas, calmarias, o vento que arrepia o corpo atento. Navego a tensão da ausência de terra à vista e a tentação de me perder nas cartas náuticas manuscritas no meu coração marujo.
Na imensidão do mar que guardo dentro de mim perdi a bussola da razão e aprendi a escutar o canto da sereia que o lobo do mar murmurava em meus ouvidos ingênuos de menina. Eu confundia marulhar com o cantar do vento, e a ventania com o carnaval da tempestade no meu corpo febril. Aprendi que soltava as amarras quando queria e que no mar o desejo é soberano como uma imensa vaga que ameaça o barco da razão à deriva.
Navego dentro de mim o mar que me separa de ti e como parte da natureza selvagem faço as travessias que se impõem como devires na proa corajosa do meu barco.
O amor é um menino em chamas no tombadilho do meu ventre.

domingo, 12 de junho de 2011

[E]namorados

O que me move
te imobiliza.
O que me encharca
te endurece.
A minha teima
te queima.
O pomar é um imã
que (a)trai os frutos (im)puros
da inocência vã.

sábado, 4 de junho de 2011

Contrapelo

A vida corre áspera a contrapelo. Os olhos destilam cansaço e teimosia em não chorar. Tudo é secura no sertão do meu desconsolo. É a solidão na latência do meu não. A sensibilidade inteira guardo na mão fechada, corpo trincado de tanto aguentar o tranco até não suportar mais trancar. A mão não vale um pássaro voando e os pés são raízes grossas fincadas na terra dura da provação. Retirante de mim mesma eu embarco no pau de arara da ilusão.
Eu preciso de um trago e de uma canção, de um filme que enrede os afetos volúveis do meu corpo sem paradeiro, sem fio terra, indestinado como uma pulsão. Eu preciso de ti. Eu não me basto em mim.
Olho indiferente o olho que me vigia. E escuto com ouvidos moucos a voz que aterroriza o momento de distração, o meu descuido. O esquecimento é cansaço e eu luto em vão contra as explicações, o entendimento do senso comum, a culpa moeda de troca no mercado das decepções. Enquanto isso a paranoia me espreita, solapa a noite e se deita ao meu lado no escuro do meu medo. Deponho as armas e acolho o desespero. Que é um sapo entalado na garganta do meu grito calado.
Preciso da força que perdi, da teimosia que desperdicei no exercício da complacência comigo mesma, com o policial infame, nas relações aviltantes corruptas e corrompidas. Ah, o insulto que não proferi! Ah, as palavras que não escrevi! E se eu tivesse gritado, e se eu tivesse me indignado a ponto de me expor indefesa e raivosa diante da fila interminável dos complacentes? E se eu não tivesse sido condescendente, talvez o cansaço não me tivesse abatido e o esquecimento não se instalasse como aquele véu mortiço, anestesia letal da dor.
As passagens estreitas me fazem olhar para o infinito. As passagens estreitas me fazem desviar os olhos do dedo (que me acusa) e contemplar a estrela (que me redime).

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Corrosão

Costura com o fio de aço da sensibilidade os farrapos do acaso que o olho peneira na trama fina do filó; remenda a seda macia do desatino com fiapos de razão, faz com os devaneios alucinados e crus do desejo uma colcha de retalhos. Pinta e borda a armadura da solidão.
Verte a sensibilidade ácida e corrosiva no ante oxidante do tempo. E deixa a pura ferrugem envergar o tesão e depor as armas sobre o cadáver ultrajado do guerreiro.
Sutura a minha pele dilacerada pela separação com a agulha pontiaguda da tua bússola desnorteada. E aquieta na tempestade do mar a calmaria do meu desespero.
Quando eu tentar me matar puxa como um titereiro o fio de aço com que seguras as rédeas da minha égua selvagem. Encena e insinua o prazer da primeira cavalgada. Mas não me faz voltar. Empina meu corpo como uma pipa no mastro da tua loucura e pela última vez me faz gozar ate (que) a morte (nos separe).

sábado, 7 de maio de 2011

Beija mão

Morde e assopra. Um arrepio horripilante separa o devaneio da vigília. Quando se fez a luz o mundo explodiu em sombras e o vermelho destilou amargura no pulso que não pulsava mais, azulava. Era a natureza soberana igual a si mesma e prisioneira do eterno retorno que submetia o meu olhar, mobilizava os sentidos e me deixava livre para ser senhora da dor.
Era um auto retrato? Era uma luva irreal que a pele da cobra escondida, o espelho deformado do mundo (des)encantado. Tudo guardado num barracão no Caju, perto do Encantado e à beira do mar.
Ele sugava sôfrego o instante. Ou se aproximava curioso da mão monstruosa do tempo no intervalo que separa a vida da morte. O cadáver ultrajado não reconhece o herói. O cadáver ultrajado é o testemunho da pegada maldosa do guerreiro. A infâmia de possuir o corpo morto do inimigo macula o herói com uma glória fugidia, anônima, calada e secreta como os sentimentos mais perversos que guardamos no fundo imundo da imaginação, no canto impuro da danação, no beco escuro e indigente dos amores perdidos e iluminados pelos fogos fátuos da paixão.

terça-feira, 26 de abril de 2011

domingo, 10 de abril de 2011

Escrita sem lei

Minha escrita tem a feminilidade do travesti, a abstinência sexual do devasso, a virtude de ser pagã, o anonimato das obras infames, o pudor impertinente da puta iniciante e vaga no mundo vagabunda como os que escolhem a deriva.
Escrita que tatuo na retina de quem me lê, que sai na urina, que é feita das ruínas do meu sentir, abstrato e órfão, exercício insensato da razão perdida. Assim escrevo como quem mendiga um leitor. Uma pedinte que cobre o corpo com os andrajos sujos da própria escrita. Homeless sem texto. Coração de ferro que oxida sob a intempérie da inspiração baldia e urbana.
Disparo minha escrita sobre quem me lê, como se fosse um terrorista, uma mulher bomba em sua burka de textos esconderijo. Seqüestro tua atenção presa ao sentido e te faço refém do meu silêncio maldito, povoado de imagens fora da ação e da lei. Aqui na calada do texto você pode adormecer ou ser sacrificado.
Não escolha nem pense apenas leia como quem sorve um trago forte de aguardente. É o suplício. Deixa o meu texto arder na tua garganta até descer como um sapo goela abaixo. E te inundar o ventre de uma diarréia de sêmem em decomposição.
Assim é o meu texto: uma vagina ácida e latente. Cada palavra que ergo bêbada sobre o balcão decadente do pé sujo escorre líquida como os amores modernos. E o balconista limpa aflito e impaciente com um pano que fede a palavras apodrecidas e amores desiludidos.
A mulher bomba tomba no balcão de fórmica e alumínio, entre ovos cor-de-rosa e um pedaço de carne antiga que bóia em meio a cebolas, azeitonas e pimentões. É como se a missão terrorista de que era autora se desmanchasse no ar como um gozo prematuro ou o gozo que escapa na hora “h”, a hora da estrela decadente. Bomba desarmada, escrita degolada pela guilhotina do senso comum, ela diz alguma coisa, é difícil ouvi-la, aproximo o ouvido, é uma canção de ninar e eu, obediente, adormeço ao seu lado.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Não

Não quero tua impossibilidade de amar, os limites, este não saber se entregar vestido de polidez e cortesia. Não quero te julgar nem explicar se é medo, se é coragem ou covardia, se é liberdade, autonomia ou servidão o que te aproxima e o que te faz me descartar. Não quero partilhar o que não é meu. Quero divisar o que é teu.
Quero a devassidão da nudez da violação das boas maneiras. A sujeira pura do sexo em quartos decadentes e com cheiro de desinfetante barato. Quero não pensar nas conseqüências e cuidar do desejo como quem amamenta um filho recém nascido. Pisando em ovos,  insegura e descobrindo o prazer da sofreguidão do sugar.
Quero palavras obscenas recobrindo a delicadeza do faro que perscruta os perfumes íntimos da minha vagina. E a mão indiscreta que percorre meu corpo como quem folheia um livro de contos eróticos. Quero a música no volume máximo depondo o entendimento. O plano inclinado e escorregadio dos abismos (in)corporais – eu e você a sós. Eu e você – samurais. Eu e você – as gueixas de lado. Toalhas mornas e o gosto pastoso do mingau que recobre a superfície estriada do estomago como um balsamo, comida para a alma, convulsão de sabores.
Não quero a tua solidão doída de esbarrar na parede do outro e escolher o atalho barato do buraco do rato. Quero a vontade de escalar e o risco de cair. A adrenalina e a depressão. A noite insone e o desespero que é o mesmo diante da intransigência do corpo e a exigência do gozo. Mas o que é o gozo se não a libertinagem – liberdade selvagem – da natureza? Que me possui sem pedir licença, sem as mesuras do amor cortês, sem disritmia.
Quero o teu defeito de fabricação, a tua impossibilidade de sustentar uma ereção, o teu cansaço, a tua hesitação diante  do convite para se perder no meu universo. Quero a impaciência e a volúpia do dominador e quero o domador de quatro perdendo a compostura na sodomia.
Quero a camisa de seda no peito aberta e as tatuagens borradas pelo destempero de amar demais e as desilusões amanhecidas como pão velho sobre a mesa do café. O café requentado e amargo como a despedida da amante preferida, já esquecida nos poemas colecionados como droga e comercializados em doses (des)medidas de amor. O amor mercadoria no boulevar das desilusões.  Ali onde a meia arrastão que vestes despe a fronteira entre o homem e a travesti que circulam nas tuas veias entupidas de gozo e morte, o teu corpo infartado e desejante.
Quero a peituda de pau duro e o teu olhar desconfiado diante da minha coragem libertina de afrontar o mundo com a pesquisa de campo que não chega a lugar nenhum, que interdita o gozo acadêmico e afoito dos bons moços de Platão. Quero a tua gargalhada depravada e ingênua como uma ejaculação precoce.
Não, não quero mais. Quero absorver e observar o que há para viver e simplesmente não te ter.  Quero o dentro e o fora que o forasteiro me oferece quando abre a capa e eu olho seu corpo nu. A fumaça do cigarro turva por instantes o encontro do nosso olhar e eu estendo minha mão que veste uma luva negra para receber a alma que o forasteiro me entrega. É assim como deve ser, sem meandros, sem ritornelos, apenas os rizomas sem meias palavras, a luz agoniza em high definition sobre a minha pele branca e (im)pura. E eu me deixo fotografar, derradeira como as folhas do outono.

domingo, 3 de abril de 2011

Água tinta

As águas correm, escorrem, escoam, derretem e evaporam, em suores, urinas, lágrimas e gozo. São doces, salgadas, ácidas e balsâmicas. Benditas irrigam a imaginação; malditas corroem a emoção. Maliciosas contaminam as fontes puras do primeiro amor.
Água viva pelo leito do rio que me atravessa. Revirada do avesso na roda gigante do engenho que tira da cana a garapa que vira doce, que revira aguardente. Água ardente que macula o paladar ingênuo do menino feito homem. Água que irriga o sertão rachado do meu coração.
Açude feito para navegarem amores ribeirinhos, passageiros como a vazante da maré. Os rios que me navegam não têm começo nem fim, são regidos pelo mar, que recebe ordem da lua, que olha de soslaio o sol, que racha a terra e o corpo do sertanejo como se fossem feitos da mesma matéria: o barro da desilusão.
Água que me inunda quando deságua de você em mim. Naquele momento sublime em que a morte se aproxima e te possui. E te depõe rei no meu ventre rainha. Água que encharca a pele esfolada pelo teu roçar exigente e pagão, como devem ser as paixões.
Que arde e cura.
Que fere e dura.
Que bate e fura.
Água que invade, vaza, infiltra e ascende pelos atalhos rasgados na epiderme do meu coração cansado de sofrer. Triste de bater em vão.
Assim navego o rio, prisioneira da nau dos insensatos. E desfilo minha insensatez imperial e senhora diante da natureza indiferente. Escrava do passar.
Na minha água de mar feita de rio você não sabe o que vai encontrar. Esse é o enigma que me decifra e te devora. São as águas de abril.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Polaroid

Esbarro na lâmina afiada da vida. Sangra. Mas se passo ao largo da lâmina sangra também. Faço com o meu grito um garrote para estancar o sangue que a vida respinga no alvo móvel do meu desejo.
As palavras fiadas como renda no tear da tua libido são véus que encobrem e desnudam o corpo delito imaginado e capturado na polaroid da minha pele. A imagem fulgura imersa em palavras. São carpideiras a embalsamar com ladainhas o sono da paixão traída.
Cada brilho retocado expõe a sombra que paira no teu coração tão só. A desilusão afia a agulha que perfura cega o olho da noite. Eu te pressinto e sangro. Experimento no calor suave do sangue que escorre a euforia do que passa. Borbulhas de champanhe barato.
Sombras breves e mínimas sangram e transbordam. Mesmo que não queiras. Ainda que sejas tecnicamente perfeito e que procures esconder a entrega, dentro da camisa que não despes jamais.
O filó da renda que o tear enredeia incendeia a imaginação com desejos ariscos e proibidos. Resta guarda-los na polaroid do meu afeto. Em instantâneos que o tempo apaga e a lembrança compra no mercado de pulgas da ilusão.
Você na polaroid é um cartão postal antigo e ingênuo que a indecência revela e as moças virgens temiam tanto quando desejavam.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Crime da criatura

O que faço com meu texto senão buscar te comover, meu leitor amante? Te penetrar com minhas palavras e me deixar penetrar pela tua leitura, ao mesmo tempo, imperial e rude, com a voz rouca  e trágica. Recobrir de erotismo falado o objeto desejado. Usar as palavras como falo, que te chicoteia e faz gozar, com a tua permissão ou sem ela, um estupro literário. Eu a criatura  (in)desejável, confesso este crime da escritura.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A banhista da praça

Ela se banhava nua no chafariz da praça. Tinha o peito nu e à distância sua magreza não me permitia perceber se era homem ou mulher. Estava agachada junto à borda do chafariz. O gesto lacônico e esquivo com que se banhava era corajoso e coberto de vergonha. O meu olhar andava a volta do chafariz entre intrigado e curioso e partilhávamos o mesmo pudor, no meu caso, o de ficar olhando seu corpo nu enquanto se banhava. Nossos olhares dançavam um pas de deux: eu a olhava enquanto ela se concentrava no banho e não buscava flagrar à sua volta um observador indiscreto, um olhar que como um grande espelho lhe devolvesse a imagem da vergonha de estar ali nua tomando banho no meio da praça. Quando ela levantava seus olhos eu baixava os meus ou olhava em outra direção.
Sua atitude reservada e tão nobre quanto estar agachada permitia impedia que qualquer um se aproximasse para afugentá-la, dizer lhe alguma coisa, ou que os policiais tomassem uma atitude. Ela inexplicavelmente não afrontava ninguém, não cometia nenhum atentado ao pudor. Era uma nudez pública e ao mesmo tempo pudica, impregnada dos gestos de cuidados raros que a vida áspera na rua arranha e desentranha dos mais resistentes e fortes.
Aquela mulher tinha uma humanidade irrepreensível. Sua nudez transbordava a loucura e a insensatez a qual um olhar afoito poderia reduzi-la. Era como se aquele gesto banal e cotidiano de banhar-se tivesse transformado a praça em um minúsculo buraco de fechadura e estivéssemos todos nos, os passantes, olhando indiscretamente por ele. Era como se nosso direito de olhar tivesse sido subitamente confiscado pela banhista e se tornado uma violação ao direito de privacidade daquela mulher nua no chafariz da praça.
Banho e banhista ultrajavam os limites e fronteiras invisíveis da privacidade em público, era uma espécie de grito calado que calava fundo em quem espreitava a cena desconcertante e banal que a nudez expunha e testemunhava. Diante do anonimato da cena eu era apenas a suspeita do crime de olhar.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Conversa mole

Longas conversas que não têm começo nem fim. Conversas que se iniciaram na pré-história de um tempo nem sempre vivido, um tempo imaginado, um tempo desejante. Tramado em meio aos filós e rendas das sensações imemoriais. Memória sôfrega e selvagem que a disciplina imposta ao corpo não domestica.
Curiosas conversas que não se desenrolam no vai e vem frenético de perguntas e respostas, comentários entrecortados por travessões, porteiras que se abrem, cercas que se pulam, na alegria de correr atrás de um fio invisível, o da conversa. Feita magicamente de silêncios e pausas também. O silêncio da partilha, do se deixar contaminar pelo que foi dito, da deglutição dos variados sabores que o falar deposita no palato, como um buquê de cheiros que o nariz colhe na voracidade da inspiração, na borda da taça de vinho. Silêncio do tempo do sentir. Silêncio da reflexão, garimpo da palavra precisa, aquela que não deixa margem de dúvida porque especialmente colhida com afeto, desejo e intenção de entendimento na árvore dos sentidos desconexos e ambivalentes. Silêncio da emoção.
Silêncio do tempo, de dar um tempo, de sentir o impacto da palavra, no estômago, no peito, no baixo ventre, na face, de absorver as palavras, de absolver a língua, de se regozijar com as sensações que as palavras desencadeiam e no final de tudo iniciar o caminho de volta do palavrear da resposta.
Conversa que é dança e contradança, ato e desacato, para boi dormir, pulsão e repulsão, telefone sem fio, afiada e fiada, apaixonada e desencantada, levada pelo vento, e enfim os versos, versados, revolvidos e com.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Fagocitose

Os corpos bóiam náufragos e órfãos no tablet liquefeito do açougue. Resta dissecá-los com as iluminuras dos cacos pontiagudos dos cristais.
O instante lampeja como a luz refletida na superfície estriada da natureza morta. Que a traição e a miopia do artista revolvem. Audaz como eu.
O tempo é uma torneira aberta a se esvair fora de mim. Lento, contínuo e indiferente. Sou a paisagem distante que teu olho toca  quando remexe lembranças, entre doces e amargas.
Na água corrente do tempo lavo o travo dos sabores que a vida, passageira, deposita com ardor na minha boca faminta.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Modo random

O videoclipe danificado se repete em modo random no canal youtube da minha imaginação. Eu sou a platéia outra vez. Os olhos ressecam diante da tela e o corpo inteiro racha como se eu fosse o sertão. Uma aridez nordestina assola a intemperança do meu desejo sem destino que vem do sul. Eu rezo pela chuva. O inverno se esqueceu de partir e eu me perdi nas águas vivas da desilusão.
Mudo de posição: agora olho voyeur pelo buraco da fechadura. O videoclipe continua a passar enquanto eu aceno para a cativa da passagem que faz um strip-tease, antes que a abolição dos sentidos liberte todos os meus desejos escravizados no corpo dócil da complacência. Os botões e as teclas não me obedecem e você fala como um alucinado na frente da câmera manipulada pela voz de uma mulher modulada pelo desejo.
As tuas mãos falam e gesticulam uma insanidade que se esconde nos bolsos da camisa e da calça. Fazem desaparecer, como se pertencessem a um ilusionista, a timidez e o temor que se escondem entre as pernas enquanto produzem uma sonora ereção.
Eu te vejo mágico de si mesmo a se reinventar no discurso que como um álibi é declamado no púlpito para redenção dos infiéis ao pensamento livre, os anônimos e encarcerados prisioneiros do FUI.
O videoclipe frita meu pensamento, como uma frigideira num forno de microondas, calcina sem deixar vestígios e meus olhos ficam estatelados como duas gemas esverdeadas fixadas morbidamente nas imagens que as palavras projetam na tela líquida da minha pele. Redescubro o tempo perdido que a tua lembrança acendeu em mim.
Os botões e as teclas não me obedecem e neste momento tento desabotoá-los para te despistar da repetição. Mas o desejo é vão.
O devir das tuas palavras, como uma cabeça d’água me inebria e afoga, me arrebata na corredeira fatal da retórica, me embebeda de alucinações sujas e me cobre com a mortalha dos versos de amor que o tempo usurpou, como se fossem proibidos, como se não fossem meus, como se fosse eu a ladra do teu coração.
Eu em modo random me repito aleatória na tua frente e fico rubra de vergonha quando teu olhar atento esquarteja a fragilidade do meu delicado gesto de adeus enquanto desligo o celular.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Aqui jaz

Odalina era de Maria e de Jesus. Incestuosa e maldito fruto do ventre da vida. Jazia perdida na cidade dos mortos como uma mulher da vida. Sempre outra em cada porto que percorro na tentativa vã de encontrar Marco Pólo. Viajante venusiano dos meus secretos desejos de possuir reinos e reis.
As cidades dos mortos são silenciosas e fechadas por portões e grades, correntes trancadas por cadeados mentirosos que simulam ser proibido entrar. As cidades dos mortos se abrem ao meu olhar desequilibrado e aprendiz de ladrão das sombras. Na revelação descubro que as luzes me assaltaram, fizeram refém e me mantêm cativa dos seus caprichos.
Eu desobedeço as leis e descubro o prazer de desperdiçar a película que me protege das altas definições. Não uso filtro solar e me exponho despudorada entre os túmulos que nem sempre guardam distância simétrica entre si. É um cemitério desordenado, sem caminhos definidos e passagens preservadas. Recobre a encosta da cidade, meio oculta e como um manto diáfano que revela a perversão do que não é para sempre, a vida.
Lugar onde não se ajusta contas com nada ou ninguém. Para onde o esquecimento, o anonimato e a infâmia nos conduzem como noivas suicidas. A solidão me toma de assalto e eu tento, em vão, fotografá-la. Odalina sorri. Maria se recolhe. E Jesus pende crucificado no terreno baldio da civilização.