quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Padre ou vigário?

A vida é um livro recheado de palavras que você passa pela cara como todas as mulheres que amou nas impossíveis prostitutas sagradas do teu pai. É um livro que releio. Ao terminar a última linha tenho a sensação de que o filme acabou. Levanto-me sentido os olhos arderem como quando saio da zona do escuro para o claro.  As impressões sobre a membrana dos afetos são frescas. E um silêncio de quem digere amordaça a minha boca para não gritar ou vomitar.
Costuro os olhos para ver se não choro. Na verdade não tenho vontade de chorar. O filme acabou. Me dou conta de que fiquei apegada ao personagem principal (porque tinha boa pegada). Andei com ele quadro a quadro na velocidade de cada cena, me arrisquei na cidade de deus, vaguei e vacilei de pau duro pela vila mimosa, senti medo e enfrentei o vazio centro da cidade, investi contra os travestis meu desejo e hesitação como se estivesse colada ao seu corpo. Fui feliz e chorei em cada encontro desperdiçado pela vontade insana de viver. Os seus olhos eram meus e as palavras que dizia pareciam ter sido escritas por mim. Eu podia ter vivido cada uma daquelas cenas que o personagem interpretava como se fosse um documentário. Etnografia da alma gêmea incorpórea que nos unia e separava. De tela líquida à poltrona aveludada as palavras impressas no papel couche 120 gramas tramavam  e traíam o segredo da exposição obscena.  Entre desvios e a deriva do vício de desperdiçar o amor.
As dores, os ódios, as descrenças, as fugas, os limites, a violência me atravessavam como agulhas infectadas pelo teu vírus mortal. Eu produzia um filme que rodava de trás para  frente. O livro foi a primeira pista a que tive acesso antes de me aproximar e atravessar o espelho como uma Alice desatinada. Naquele tempo eu o li com a distração necessária para me aventurar em você. Eu não reparei nas sinalizações da estrada, postadas no meio fio do abismo, na verdade eu passei batida por elas, com o descuido juvenil necessário às grandes paixões. Passados dois anos da separação releio o livro e revejo em slow motion tudo o que me foi contado a boca pequena escrito em alto e bom som, em cada entre linha que a escrita atirava contra mim, assassinando a ficção e deixando apenas os despojos da realidade rasgada por dois fios, o da seda e o da navalha.
É inacreditável e irreal como um filme. Tempo mítico circular que apenas os deuses conhecem e desfrutam. O fim está para sempre prisioneiro da passagem para o começo. Cometo o crime da infâmia de uma releitura que te me devolve mais real que o rei da zona. Imagino onde eu seria guardada no relicário daquela memória, escrita sem pudor ou vergonha, se seria nomeada como os mais queridos e respeitados, ou se apareceria anônima como aqueles que o rancor roubou o rosto, borrou a identidade, calou a descrição para que não fossem reconhecidos. Uma estranha ética que não poupava detalhes, mas nomes. Que nomeava a dor, mas ocultava o algoz. Para que a vergonha ou o que quer que as palavras despertassem como sentimento, pudesse ser experimentado solitária e anonimamente, como devem ser os grandes crimes.
Onde ficaria a minha delicadeza rara que na epígrafe escolhida de Rimbaud é a causa da vida perdida? Eu que no namoro com a morte descobri minha paixão pelo risco, meu desejo inconfesso de não me proteger, não porque uma perversa baixa estima me consumisse, mas porque ao contrário, eu me sentia como uma deusa grega neste mundo das imperfeições humanas demais. Vontade de ser anjo caído e rastejar inumana entre os dejetos mais puros da existência banal e infame a qual eu estava para sempre condenada. Talvez como você. Talvez não.
O livro que escrevo vai revelar um dia, de forma analógica, em papel brilhante, sem margens e com altos contrastes as queridas diferenças e singularidades que nos unem após a separação. O incestuoso casamento de almas irmãs que afrontou a moral e os bons costumes de nossas inquietas e inexatas existências. As proibições que alegremente violamos como dois adolescentes que desconheciam o tempo e a decomposição dos cadáveres não embalsamados pela história. Que se inebriavam dos cheiros com que a irreverência perfumava seus corpos e almas. Que se feriram para sempre com o fio de seda da navalha do perene, do que passa, do que acaba.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Poros ciosos

O mundo é poroso. A minha pele de cobra está coberta de poros expostos que o olhar predador captura. Não enxerga a dor, nem o amor que transpira frio em pequenas gotas. Suor que aos poucos engrossa o rio que corre no leito do meu desejo.
Uma gaze de poros recobre a minha alma asfixiada pelo ardor da paixão. Os pelos arrancados como vestígios impuros da vergonha de ser animal deixam seu rastro corpo afora, forasteiro de mim. E uma geografia pornográfica assinala no mapa os lugares do corpo minado pelo desejo obsceno de ser presa.
Sou pedra e pétrea e assim porosa eu me submeto a ação do tempo, da intempérie da paixão, do destempero das águas corrosivas que encharcam as curvas do corpo esculpido pela dor. Sou cidade sitiada pelas inundações de março – ilha e oceano. E no convés do navio o porto é apenas uma miragem das águas onde somos reféns da ilusão de ficar “a ver navios”. Sereia e Medéia eu te acometo no batuque do meu pulsar e à tua cabeça fogosa eu ofereço o mistério do meu regaço silencioso e sinuoso. Sou uma armadilha de poros, uma bateia que mergulha voraz na água do rio à procura da tua pepita de outro. E um convite para que as pontas dos teus dedos pratiquem o crime inafiançável de que apenas as mãos são culpadas: alisar com ingenuidade a superfície imperfeita da carne. Sou carnificina, carnaval e Carmen. No mercado de carnes pratico o ofício de tatuar a dor. Tatuagem que é cicatriz do grito calado no corpo, esquecimento, pele condenada a guardar a dor, costurada como uma mortalha nos afetos desperdiçados,  ressecados e dissecados no meu coração.
Os poros me purificam. É o suor que se esvai em lágrimas. Um mesmo sal de um mar abismo me banha o corpo. Bendito ritual de possessão e entrega que como uma maré vazante escoa e faz revoar a minha insensatez. Incendeio a praia da solidão e do outro lado a escuridão indiferente e  altiva me sorri com a ironia da Gioconda. Eu não a vejo, apenas pressinto, no arrepio que eriça os poros envenenados pela sangria da desilusão.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Na água viva de Clarice

Fotografia Hugo Denizart
Quero que minha escrita seja como uma geléia de rosas pequenas e escarlates e que seu gosto seja capaz de benzer e ao mesmo tempo acometer todos os que dela se aproximarem famintos ou não.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Monólogo de Eros carnavalizado

Um: Confesse com a sua boca (que chupa tão gostosamente o meu pau) que você nunca encontrou um abismo tão phoda!

Outro: Confesso (qu)e você gama? Então confesso... E o que mais preciso fazer? Abro as pernas, me masturbo safada diante do teu olhar tátil.  Empino o rabo para você penetrar gostoso e me fazer cair nos desvios do bloco dos celerados. É engraçada a geografia erótica do corpo humano: eu poderia considerar a minha boceta como um abismo de fodas... Mas o teu pau protuberante, duro, empinado ate o  teto... Como compará-lo a um abismo? Talvez fosse a tábua de salvação do abismo que tramas com  palavras, músicas, armadilhas do pensamento, sombras do homem civilizado com a qual atiças a minha imaginação e me seduzes. Que acha de tudo isso?

Um: Você já se tornou uma lenda. A lenda de uma tarada. O pau é o trampolim para o abismo. Você co/pula, co/pula e se joga despudoradamente nos meus braços. Não pára de fazer o "carnaval da devassa" no tamborim da minha pica indecente. Hoje vou à cidade fotografar as pre(s)sas (d)o carnaval.

Outro: Tuas palavras formam um enredo que me enreda à parte neste carnaval. Entre tábuas e trampolins navego nas águas revoltas do amor fatal. Para uma boa nadadora, meia braçada basta, mas nado até adernar no mar da tua perdição. Cultivo a adoração. Mergulho fundo, destemida e tarada,  mesmo que vez ou outra tenha que subir à tona para respirar, respingar no mundo um pouco do gozo que assola as partes baixas do ventre-coração. É uma anatomia carnavalizada pelos mascarados do bloco de sujos antes de lavaram as mãos sujas do sangue da paixão... Drama! A dor de cabeça me desatina, como a paixão por você.

Um: Estou com saudades de você. Dormi muito mal por causa da dor. Vou sair em bloco: se entrou, deixa ficar e aproveita.

Outro: Será que não podemos nos ver entre uma entrada e uma saída, do bloco, é claro?
O carnaval é, dizem as más línguas (e as boas também), uma festa da carne.
Haja blindagem para dar conta do que não é espiritual e fica resolvido na religiosidade das máscaras duplas, triplas, que os cavalos, as mães e os pais de santos, os bispos e os fiéis usam o ano todo. A matéria do sonho é o celofane, esta mesma película que você usa como a fotografia para separá-lo do mundo imperfeito dos homens. O papel celofane é tradução mais que perfeita da fragilidade desta impermeabilidade, pura aparência, cheia de brilhos e transparências que por outro lado apenas deixa o mundo entrar e entrar e entrar e exercer com a máxima sofisticação de embrulho para presente todo o seu aparato de captura do qual você nunca escapou incauto ou não.

Um: O celofane foi criado para envolver você no embrulho da minha sedução. Sacou?
Eu me separei do mundo imperfeito dos homens e esqueci da Lobinha da Cobal.
Quando me dei conta estava preso no papo aranha da felina.

Outro: Parece que o celofane é uma espécie de bom bril, tem várias utilidades. Além de colorir as luzes, embrulha, faz barulho, cria barreiras  transparentes e facilmente desmontáveis... É um artifício e tanto para toda esta sedução carnal e carnavalizada que canibalizamos nas palavras, os gozos e as fantasias de pierrô e colombina com que os lobinhos incautos se disfarçam no carnaval. Quem é você? Diga logo que eu quero saber... É assim que os mascarados procuram os namorados... será que vão encontrar? Que dúvida?

Um: Vai levar ou quer que eu embrulhe? Acho que não existe nenhuma utilidade nesse plástico. A única e derradeira função dessa fina película é tecer fios invisíveis que i-mobilizam a incauta. O seu segundo erro é imaginar que as fantasias são um disfarce carnavalesco. Elas são a pele que reveste o corpo em ruínas antes de chegar no tecido social. São uma fina membrana que envolve a minha pica imprudente.
Embrulho im-pecável feito por um homem malandro e rodado pelas estradas desse Brasil, onde se plantando...tudo, tudinho.....dá.

Outro: Este é o email da de(re)sistência. Hoje não tem como respondê-lo à altura.
Escrevo apenas para inspirá-lo e incitá-lo a continuar desbravando as terras brasilis...
Insisto na nebulosa ambigüidade das fantasias, na literalidade do sentido desejante da fina membrana azulada que envolve a maçã, a fruta da tentação... Adorei as tentativas e tentações suburbanas embaladas pela batucada dos teus passos,  depois de foder deliciosamente... A submissão ao desejo me fascina, me alucina... Escrava da natureza selvagem que não fica na Mauá, acho você irresistível e fico completamente paranóica de que a tal da senhora czarina o descubra nos descaminhos do mundo sensual e o roube de mim.
Levo embrulhado, com os sentidos embaralhados pelo pecado e a devassidão.

Um: Foi ótimo visitar aquelas loucuras arquitetônicas com você. Fiquei muito feliz em partilhar as fodas, o subúrbio coração e tudo mais. Ninguém vai me roubar etc...

Outro: As experiências e os experimentos aprofundam os sentimentos que se alimentam do encontro. Foi bom ver a minha alma copulando com a sua pelas ruas do subúrbio, Madureira, Piedade, Abolição, Encantado... Geografia que se mistura nas veias que correm entre o meu coração e o seu, estética que lapida a minha sensibilidade no teu olhar que nem sempre consigo alcançar, tão inquieto, preciso e audaz ele se desloca entre as luzes e os iluminados.
O convívio prazeroso é uma armadilha tão perigosa como a devassidão do corpo capturado pelo celofane da imaginação.

Um: Proclamo às margens da im-Piedade a Abolição do mundo enquanto faço amor com você. Completamente Encantado, vejo fragmentos do desejo povoarem as casas do subúrbio coração, em Madureira.
Mulher Madu(rei)ra faz um homem se tornar rei.

Outro: Enquanto você brinca com as palavras eu me deixo embalar pela cadência dos teus carinhos, cada vez mais ousados e abusados, cada  vez mais intensos e vertiginosos. Sou levada de roldão para o mundo desconhecido dos prazeres ainda não experimentados. Feitos de surpresa, encanto e loucura, alquimia explosiva, forte, que deixa marcas para sempre nas membranas úmidas da memória, do desejo e da paixão. Películas que recobrem os aparatos da sensação.
Mulher madura faz um homem se tornar rei: está fundado o bairro de Madureira!
  
Um: Quero lhe agradecer pelos momentos felizes que passei ao seu lado. O texto é conhecido, a minha intencionalidade não! Adoro lhe arrastar pelos cabelos como vítima do meu desejo, com passagem marcada para os Prazeres mais Arcaicos da Sensualidade, colônia penal para os condenados pelo sexo.
Transpassar teu corpo com a minha pica insana até atingir o âmago onde se fabricam as ilusões, para perpetuar todos os crimes de amor.
Esporra, suor e lágrimas.

Outro: Celebro o carnaval, cheio de poesia, frases conhecidas, intencionalidades insuspeitas, fodas gostosas, encontros furtivos, com o bloco dos meus desejos desfilando a noite toda (ou melhor, a qualquer hora  do dia) pela rua do João e do seu Afonso... a disponibilidade do encontro, o presente que a temporada me reservou. Eu adoro a arquitetura da relação, este projeto desenhado a quatro mãos, assim meio no escuro, nas coxas, meio usando iluminação especial para enxergar onde não há luz - o abismo.

Um: Você sabe que o prazer é todo me(u) (teu) sempre. Nada mais gostoso no carnaval que ter uma devassa ao alcance do corpo, onde posso  penetrá-la com a mão,  o pau, a língua e outros objetos não nomeados.
Pau puro, como diz você.
Todo Impuro como eu digo e com a língua fetichista presa numa prega do corpo. Fina(l)mente apegada.





segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Cidades I

Uma mulher bêbada de amor no beco dá bola e é enrabada com violência delicada.
Ato contínuo são flagrados sentados a beira mar olhando juntos as luzes piscantes da noite, ela com os braços na cintura dele, provocava em seu coração um incêndio tornando a praia vermelha.
As palavras que ele lhe sussurrava no ouvido envolviam a cintura de seu coração de fêmea e encharcavam os olhos de água salgada do mar, uma misteriosa emoção invadia os corpos e os corações fazendo-os derrapar na curva da razão. Na exuberância distraída do seu corpo ela acolhia a sensação da presença de um homem cortês, atento e próximo da alma selvagem que a habita na superfície da epiderme, enquanto ele encostava ingênuo o gargalo da garrafa de água gelada no contorno do bico do seio escondido sob a blusa. Uma felicidade rara, bela e fulgurante, exalava deste contato como a explosão de fogos de artifício no céu escuro das noites de festas e gozo.
A única coisa que ela desejava era ter a libido dedilhada na pedra do sal, lugar mítico, sensual e misterioso como a cidade reinventada na virilidade da pegada de menino, mão que resvalava na devassidão do relevo rebelde e sujo dos becos entre as suas coxas de pedra... Mas de repente ele recuava e como um titereiro a deixava suspensa nos fios que moviam o  desejo, como se fosse o fiel executor de um contrato masoquista, a inundava das pulsões que a interrupção do prazer destilava e que a aprisionavam para sempre aos caprichos do amor.
E ela se abandonava assim indefesa e capturada à presença dele, entre os altos e baixos da cidade revelada por becos que clamavam o despudor e embebiam na devassidão úmida  das arestas polidas pelo tempo os corpos atravessados pelos excessos – corpos excitados.
E diante do tribunal do sal lavro a sua confissão de amor incondicional à cidade e de total rendição à sedução que a aprisiona pela força do encontro amoroso que se dava nas cloacas dos becos malditos e mal afamados do seu coração de menina.

domingo, 28 de novembro de 2010

Histórias de mulher I [aflições]

A história lhe cobria o corpo com o pudor da fantasia e a desfaçatez do desejo. Era um duelo entre iguais no tatame das caligrafias. E ela se agarrava às palavras como um náufrago ao pedaço de madeira que acredita o fará resistir até morrer ou ser resgatado, o que nesta situação é o mesmo apesar de não ser igual. Mar adentro ela abocanhava a história que só podia ser contada se, com a arma da imaginação, fosse capaz de invadir o corpo a corpo e fazer tal arruaça que dele fizesse brotar um corpo sem órgãos. Corpo indômito e preparado para experimentar a sensação limite da história que imaginava lhe tatuar com a agulha fina do destempero da paixão.
Aflita eu olhava a cena com a caneta na mão.

Por fim a história lhe era inscrita no corpo por um habilidoso calígrafo, capaz de provocar suspiros e fazer escapulir o gozo, represado nos confins da imaginação erótica, guardada a sete chaves na gaveta do esquecimento. Sob a grafia deste calígrafo artesão ela via sua pele se encher de prazer e tremer levemente diante da alegria que atravessava o ventre, os mamilos e os lábios – da boca e da vagina, em pequenas [e sucessivas] mortes.
Ela segurava suavemente o pincel entre contrações ritmadas pela perda da noção de tempo, pelo debruçar-se sobre a beira do precipício do prazer arredio que como um cavalo selvagem se aproximava para roubar o torrão de açúcar do líquido viscoso que lhe escorria no meio das pernas.
Aflita eu respirava ofegante sob os lençóis.

Enquanto isso ela buscava ávida a perfeição da caligrafia e a precisão dos significados das palavras desconexas entre as tramas da escrita, tramadas como armadilhas, para serem decifradas ou executadas no paredão do silêncio, de joelhos e com os olhos vendados. Era o sacrifício que ela aflita preparava.

Um encontro é como deparar-se com o mistério de um iceberg, este imenso bloco branco azulado, escondido sob a superfície abissal do mar. A parte visível sempre infinitamente menor do que a que se oculta sob a fantasmagoria plácida, silenciosa e fria da superfície corpórea que se expõe como um convite à navegação no que chamamos de (a)mar.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Carrinho de frete na Lapa. Foto de Hugo Denizart
Foto fretar a Lapa.


Quem, como eu, chegar desavisado ali no Largo da Lapa, talvez não perceba a densidade do ar rarefeito que a historia local insufla, cadenciada pela sucessão da dupla arcada do aqueduto monumental. Nem vai saber que até 1790 – nos tempos do vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa – no Rio de Janeiro, não existiam ainda o Passeio Público, nem as ruas do Passeio, das Marrecas e da Lapa. Perceberá diferenças se chegar por ali de dia ou de noite, se na segunda ou na sexta, para assistir a um show, tomar um chope, trocar um pneu, almoçar, assistir a uma missa, fazer uma aula de balé ou de música, ouvir um concerto, encenar um texto, atrair um cliente, participar de uma roda de capoeira ou estar de passagem. A cada situação uma Lapa diferente se desnudará, como uma mulher que a cada encontro se apresenta com roupa, maquiagem e atitudes distintas.
Mas será diferente também se nos aproximarmos dela sempre na mesma hora do mesmo dia, como a buscar o habitual, a repetição, os iguais. Encontraremos a diferença na repetição. A Lapa é transitória como a lua e nômade como povos ancestrais -- fantasmagorias que nos  espreitam  detrás de cada recanto mal iluminado pela razão. A Lapa é um Aleph[1] no olho da cidade, primeira letra do alfabeto da língua sagrada ou abertura microscópica através da qual podemos enxergar todo o universo.
Se o calor for grande ou a sede mortal e o sol já tiver capturado as insinuações de que a noite se aproxima é possível nos sentarmos num dos conjuntos de cadeiras plásticas arrumadas sobre o calçadão da rua Visconde de Maranguape, em torno de um isopor cheio de cerveja e refrigerantes gelados e uma chapa quente onde sanduíches são preparados de acordo com o gosto do freguês.
Ali sentado, diante do vazio do largo da Lapa, uma falsa fachada te espreita, pintada como um tromp l’oeil, - um engana-o-olhar enquanto você degusta um engana-a-fome -, sobre a empena cega, descoberta e posta a nu por demolições que o tempo apagou. Por alguns instantes ou depois de muitas cervejas, o tromp l’oeil parecerá mais real que a própria realidade da Lapa e a vista, enganada pela perspectiva desenhada sobre a parede, poderá desfrutar de um conforto visual, ainda que a imagem seja apenas uma citação, uma alegoria.
No espaço desterritorializado pela ilusão dos jogos de luzes, a Lapa é vermelha, imperfeita e mambembe como um carrinho de frete empurrado por um homeless – meio clown meio mendigo,  coração tatuado a ferro e fogo pela agulha suja da vida. Um carrinho atulhado de tralhas e lixo, feito de pedaços de madeira para guardar as fantasias dos brinquedos infantis e do sonho de ter um quarto mobiliado como o da fotografia colada no carrinho.
O sonho do quarto arrumado é uma imagem imantada na literalidade provisória do morador de rua, o catador de lixo, o que freta o nada para lugar nenhum, e que da borda marginal da cidade acalenta desejos tão humanos como o de trocar dormir na rua por uma cama coberta de lençóis brancos.
O carrinho de frete, metáfora da cidade, é o lugar que abriga o universo infinito da vida de um homem, mesmo quando lhe tiraram quase tudo – casa, trabalho, roupa e comida – mas não lhe tiraram a capacidade de fabular e circular pela cidade. Posse definitiva que se afirma no livre caminhar pela rua, no levar e trazer do frete interminável de uma carga inútil que não se destina a ninguém, carga em que restos e sonhos são a mesma coisa.
A Lapa é o lixo recolhido no relicário de um carrinho sobre rodas de rolimã, fábula de uma pintura gasta e manchada, objetos quebrados, restos usados onde a leveza branca de uma renda de filó explicita que há lugar para sonho e fantasia naquela caçamba predestinada a carregar apenas detritos. Assim é a Lapa: frete de ilusões.
Quantos mundos cabem no clique instantâneo de um olhar?
Quantos planos se sucedem na perspectiva polifônica de uma cidade partida? O excesso é efêmero como o nada, tem a densidade do silêncio que grita. Este lugar mágico de sínteses incômodas e cheias de beleza. Planos imperfeitos nos quais as sucessões de imagens e afetos nos dão a impressão de serem jogos de espelhos, onde eu te espelho ao me espelhares e os dois já somos outros na travessia do canteiro central iluminado por um arco-íris sob o qual meninos viram meninas e vice-versa. Vago travesti.
A Lapa erra incerta na corredeira da borda do abismo. Na Lapa só se vive uma vez e para sempre no transitório das passagens fugidias que cada um nela experimenta. Ficar na Lapa é ver o tempo passar imóvel e imperial e perdê-lo para sempre sem o roteiro proustiano de sua redescoberta. Na Lapa, redescobrir dói como uma ferida em carne viva, melhor esquecer, como faziam os boêmios nos braços despossuídos das prostitutas perfumadas de Madame Gaby. Vago permissiva.
É o lugar do encontro com o poeta amador que habita as nervuras nervosas do entre arcos, enquanto o show da vida não começa e um alto-falante inunda de ruídos a calçada esburacada. Ruídos de solidão, ruídos de amores perdidos, ruídos de desilusão, ruídos mentirosos, ruídos polifônicos, ruídos sujos, ruídos despojados – ruídos. Arte de poetar entre a sarjeta e o céu que a bailarina trapezista promete desafiar do alto do moderno arranha-céu. Só o poeta pede bis e goza gostosamente a vertigem da queda. Vago inerte.
Mais adiante, uma insólita instalação de objetos roubados ao lixo marca o lugar de cada um na fila do sopão, desilusão da comida aguada sob a maior obra de engenharia do século 18 que por ironia da vida servia para abastecer de água a cidade – o aqueduto monumental. Sob os Arcos da Lapa oferece-se água aos mendigos infames e famélicos, não para matar a fome, para redimir dos pecados que devem jejuar até a morte.
Fratricídio e piedade sob a lápide do arco de tempo que tramando coisas do arco da velha constrói uma armadilha para os incautos transeuntes que velam pela Lapa. Vago impune.
Uma religião incógnita circula pelas ruas, becos e vielas. A crença no amor romântico oferecido em paus que esporram peitos e amamentam leitos disformes na conformidade de ser duplo – travesti  –, a rua subverte a ordem enquanto ultraja desejos na espuma branca das areias de Espanha distantes. Vago errante.
A cidade feita de vários planos fretados da realidade desvendada pelos olhos atentos de um voyeur injeta seus fragmentos na minha veia. Nada acontece. A droga parece ser inofensiva diante da urgência das sensações, diante da espreita do poeta amador. Já estou quase desistindo da viagem induzida quando o olhar travestido de esquina da Lapa acena da borda do abismo para que eu me aproxime. Desconfio: será que este é o início da viagem? Aquieto meu coração e me aproximo da esquina fatal onde me deixo seduzir pelo desvio inevitável no curso da cidade. Ali o mundo se bifurca e eu escolho o atalho sombrio da esquerda, pavimentada por luzes escassas e convites irrecusáveis. Deslizo na direção masculina do desejo flertando com sensações que me parecem divertidas e insólitas dentro da cena noturna na Lapa. Percebo nacos de amor amassados junto com o lixo varrido das mesas dos bares e com os olhos suplico ajuda ao poeta rendido de tanto amar a dor. Vago tentada.
Vasculho a ambigüidade como condição de acesso ao mundo obsceno dos lugares que misturam memórias sutis e perspectivas de futuro lavadas – estamos fora da cena e podemos experimentar os atalhos que a cidade, tão generosamente puta, nos oferece. Penso ainda, antes de dar o próximo passo, qual será o preço desta aventura? Ninguém cobra o ingresso, ninguém vigia a entrada para o cadafalso. É uma aventura só para os incautos e minha alma encantada pelo efeito tardio da droga injetada nos poros abertos com que farejo a cidade nela se perde, feliz como um pinto no lixo. Vago perdida.
Uma cidade a meia luz mais se oculta do que se revela, a não ser que eu opere em negativo toda a experiência do corpo e do afeto embebido no álcool acético da travesti visceral que rebola na minha frente, sob luzes amareladas, como se fosse uma mariposa hipnotizada pelo fascínio do brilho de cristais da cidade.
A calçada arqueada à minha frente é uma sucessão de frontarias, ranhuras pétreas e arabescos férreos. Planos horizontais e visadas verticais confundem o olhar preso a uma iluminação paralela dramática,  de ponta-cabeça onde as sombras cobrem o branco dos olhos e cegam os sentidos expostos a desejos não catalogados pela lista da libido oficial.
Procuro uma cidade que me ofereça a verdadeira grandeza de sua entrega e não me contento com um cardápio self service grávido de cópias imperfeitas da culinária engendrada na reprodutibilidade digital das franquias que  proliferam como ratos pela cidade. Vago faminta.
Encontro várias cidades. Provo de cada uma seu doce e seu amargo. Inalo perfumes, suores e fedores. Nas altas horas da madrugada a única coisa que desejo é ser recolhida, como um objeto usado, pelo carrinho de frete do anônimo fotógrafo catador de lixo e adormecer sonhos suicidas entre os lençóis e os filós que envolvem a boneca da minha infância perdida, para sempre, nas ruas da Lapa.”

2007.



[1] “un Aleph es uno de los puntos del espacio que contiene todos los puntos” (P. 623 – Obras completas de Jorge Luis Borges – 1923-1972, Buenos Aires Emecê Editores, 1985)
N.E.: a foto publicada na abertura deste texto é do fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart.