domingo, 17 de agosto de 2014

Alegoria

Existe um silêncio
No convite
E um convite
No silêncio.
Não é uma escolha.
A resposta
É uma folha seca
[letra] Morta
E deixa viúvo o pensamento.
Existe
Um funeral
No silêncio
E um silêncio mortal
No funeral.
A paz
É uma alegoria
E viola a delicadeza da imagem
Com palavras ásperas
E imaginação atroz.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Quereres

Quero beber
O branco do lírio
O leite
Da pétala aveludada.
Sorver o imperceptível
Pólen
Da tua passagem
Sobre o meu vai e vem.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Taça de vinho

"A música embala a morte do dia enquanto eu encho uma taça de vinho. E o escuro da noite se derrama silencioso no oco da taça cristalina. A lua sorri divertida no céu e um hálito misterioso exala do bater de asas dos pássaros em revoada, no encalço dos gatos pardos iluminados pelos últimos lampejos do sol sobre a cidade.
Os homens fumam em silêncio os segredos que as mulheres devassam com a língua cortante que tece tapetes, fecha cortinas, acende luzes e fogões, põe a mesa, banha os filhos, cerzi monstruosa colcha com os retalhos do dia e das falas murchas sobre histórias de homens infames.
A noite é apenas menina e escura enquanto os faróis nervosos cruzam o asfalto, o cruzamento, a boca do túnel, a linha suspensa da ponte sobre o precipício. A noite cruza o pensamento e as pernas longas sobre a hesitação, a frustração. Bate palmas para o improviso do músico à capela jamais outra vez. O instagram registrou, mas o barulho escorregadio da meia de seda nas pernas que se cruzam ele não capturou, eu escrevi mas ninguém tocou.
A noite avança até o limite do passar. Alguém dorme, alguém insone, alguém ninguém no torvelinho tosco da repetição. A taça vazia guarda cristalina fugidios noturnos da madrugada."

quinta-feira, 12 de junho de 2014

[239]

Os cinzas
Descansam
Um sobre o outro
Na linha do horizonte
Na vigília da janela
Na cancela do meu olhar.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

[238]

Estribo do tempo
O trem
Atravessa o temor
A neblina
O amante
E fugazmente
Se dissipa
Ao amanhecer.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

[IN]escapável



Indelicado
Que faz
Indelicadeza
Inominável
Que não
Nomeia
Inclassificável
O que
[Escapa]

terça-feira, 25 de março de 2014

[119]



Tateio a tua caligrafia
Em busca da palavra.
Tropeço nas letras
De mãos dadas
Que me enredam
Na armadilha
Do ilegível.
Explícita
A caligrafia se abre
Como duas conchas
À língua pérfida
Do meu desejo
De poesia.

quinta-feira, 20 de março de 2014

01.



Pisarei em falso
até que
o salto alto
queira meu corpo
domar.
E me tirar o chão
como se
amorosamente
afastasse a razão.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Mãos gagas



Sinto as mãos gagas e estranguladas. Asfixiadas pelo silêncio. Afogadas na torrente de palavras que tentam, em vão, dizer.
Sinto as mãos gagas, esmagadas pela pulsação do coração. Disritmia e solidão. O inescapável, a loucura, o arco esticado antes do disparo da flecha.
Sinto as mãos gagas a segurarem objetos que incessantemente escapam e se espatifam no chão que não é de estrelas, é de cacos. Gagueira cacofônica que arranha a superfície lisa que jaz fora do ato, atemporal e terna.
Não sinto mais as mãos esmagadas que se esmeram em gestos afoitos. Afastadas do coração, gesticulam pensar a impunidade do ato. Como a mão que dedilha o piano e arranha as cordas do coração vagabundo.
Não sinto mais as mãos que vasculham o lixo no afã de encontrar alento, que tateiam no escuro e acariciam sombras, que se movimentam atônitas no vazio. Não sinto mais. Pressinto.
As mãos crescem como raízes, sem destino e ferrenhas, crescem como ramas, terrenas. Invejam as tramas das teias, aéreas.
As mãos se agarram gagas e afagam a intemperança dos gestos perdidos no fazer. Sôfregas percorrem o submundo dos lençóis. No corpo desnudo rabiscam linhas tortas e espalmam o universo como quem colhe um verso entre as folhas perdidas do caderno de caligrafia.
Sinto as mãos e elas são velhas, borradas pelos acessos de esquecimento. Elas tremem e temem. As mãos  manuseiam, manipulam e saltam sobre a espada e o abismo como quem não tem medo de morrer ou matar.