segunda-feira, 14 de março de 2011

Polaroid

Esbarro na lâmina afiada da vida. Sangra. Mas se passo ao largo da lâmina sangra também. Faço com o meu grito um garrote para estancar o sangue que a vida respinga no alvo móvel do meu desejo.
As palavras fiadas como renda no tear da tua libido são véus que encobrem e desnudam o corpo delito imaginado e capturado na polaroid da minha pele. A imagem fulgura imersa em palavras. São carpideiras a embalsamar com ladainhas o sono da paixão traída.
Cada brilho retocado expõe a sombra que paira no teu coração tão só. A desilusão afia a agulha que perfura cega o olho da noite. Eu te pressinto e sangro. Experimento no calor suave do sangue que escorre a euforia do que passa. Borbulhas de champanhe barato.
Sombras breves e mínimas sangram e transbordam. Mesmo que não queiras. Ainda que sejas tecnicamente perfeito e que procures esconder a entrega, dentro da camisa que não despes jamais.
O filó da renda que o tear enredeia incendeia a imaginação com desejos ariscos e proibidos. Resta guarda-los na polaroid do meu afeto. Em instantâneos que o tempo apaga e a lembrança compra no mercado de pulgas da ilusão.
Você na polaroid é um cartão postal antigo e ingênuo que a indecência revela e as moças virgens temiam tanto quando desejavam.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Crime da criatura

O que faço com meu texto senão buscar te comover, meu leitor amante? Te penetrar com minhas palavras e me deixar penetrar pela tua leitura, ao mesmo tempo, imperial e rude, com a voz rouca  e trágica. Recobrir de erotismo falado o objeto desejado. Usar as palavras como falo, que te chicoteia e faz gozar, com a tua permissão ou sem ela, um estupro literário. Eu a criatura  (in)desejável, confesso este crime da escritura.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A banhista da praça

Ela se banhava nua no chafariz da praça. Tinha o peito nu e à distância sua magreza não me permitia perceber se era homem ou mulher. Estava agachada junto à borda do chafariz. O gesto lacônico e esquivo com que se banhava era corajoso e coberto de vergonha. O meu olhar andava a volta do chafariz entre intrigado e curioso e partilhávamos o mesmo pudor, no meu caso, o de ficar olhando seu corpo nu enquanto se banhava. Nossos olhares dançavam um pas de deux: eu a olhava enquanto ela se concentrava no banho e não buscava flagrar à sua volta um observador indiscreto, um olhar que como um grande espelho lhe devolvesse a imagem da vergonha de estar ali nua tomando banho no meio da praça. Quando ela levantava seus olhos eu baixava os meus ou olhava em outra direção.
Sua atitude reservada e tão nobre quanto estar agachada permitia impedia que qualquer um se aproximasse para afugentá-la, dizer lhe alguma coisa, ou que os policiais tomassem uma atitude. Ela inexplicavelmente não afrontava ninguém, não cometia nenhum atentado ao pudor. Era uma nudez pública e ao mesmo tempo pudica, impregnada dos gestos de cuidados raros que a vida áspera na rua arranha e desentranha dos mais resistentes e fortes.
Aquela mulher tinha uma humanidade irrepreensível. Sua nudez transbordava a loucura e a insensatez a qual um olhar afoito poderia reduzi-la. Era como se aquele gesto banal e cotidiano de banhar-se tivesse transformado a praça em um minúsculo buraco de fechadura e estivéssemos todos nos, os passantes, olhando indiscretamente por ele. Era como se nosso direito de olhar tivesse sido subitamente confiscado pela banhista e se tornado uma violação ao direito de privacidade daquela mulher nua no chafariz da praça.
Banho e banhista ultrajavam os limites e fronteiras invisíveis da privacidade em público, era uma espécie de grito calado que calava fundo em quem espreitava a cena desconcertante e banal que a nudez expunha e testemunhava. Diante do anonimato da cena eu era apenas a suspeita do crime de olhar.