terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Conversa mole

Longas conversas que não têm começo nem fim. Conversas que se iniciaram na pré-história de um tempo nem sempre vivido, um tempo imaginado, um tempo desejante. Tramado em meio aos filós e rendas das sensações imemoriais. Memória sôfrega e selvagem que a disciplina imposta ao corpo não domestica.
Curiosas conversas que não se desenrolam no vai e vem frenético de perguntas e respostas, comentários entrecortados por travessões, porteiras que se abrem, cercas que se pulam, na alegria de correr atrás de um fio invisível, o da conversa. Feita magicamente de silêncios e pausas também. O silêncio da partilha, do se deixar contaminar pelo que foi dito, da deglutição dos variados sabores que o falar deposita no palato, como um buquê de cheiros que o nariz colhe na voracidade da inspiração, na borda da taça de vinho. Silêncio do tempo do sentir. Silêncio da reflexão, garimpo da palavra precisa, aquela que não deixa margem de dúvida porque especialmente colhida com afeto, desejo e intenção de entendimento na árvore dos sentidos desconexos e ambivalentes. Silêncio da emoção.
Silêncio do tempo, de dar um tempo, de sentir o impacto da palavra, no estômago, no peito, no baixo ventre, na face, de absorver as palavras, de absolver a língua, de se regozijar com as sensações que as palavras desencadeiam e no final de tudo iniciar o caminho de volta do palavrear da resposta.
Conversa que é dança e contradança, ato e desacato, para boi dormir, pulsão e repulsão, telefone sem fio, afiada e fiada, apaixonada e desencantada, levada pelo vento, e enfim os versos, versados, revolvidos e com.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Fagocitose

Os corpos bóiam náufragos e órfãos no tablet liquefeito do açougue. Resta dissecá-los com as iluminuras dos cacos pontiagudos dos cristais.
O instante lampeja como a luz refletida na superfície estriada da natureza morta. Que a traição e a miopia do artista revolvem. Audaz como eu.
O tempo é uma torneira aberta a se esvair fora de mim. Lento, contínuo e indiferente. Sou a paisagem distante que teu olho toca  quando remexe lembranças, entre doces e amargas.
Na água corrente do tempo lavo o travo dos sabores que a vida, passageira, deposita com ardor na minha boca faminta.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Modo random

O videoclipe danificado se repete em modo random no canal youtube da minha imaginação. Eu sou a platéia outra vez. Os olhos ressecam diante da tela e o corpo inteiro racha como se eu fosse o sertão. Uma aridez nordestina assola a intemperança do meu desejo sem destino que vem do sul. Eu rezo pela chuva. O inverno se esqueceu de partir e eu me perdi nas águas vivas da desilusão.
Mudo de posição: agora olho voyeur pelo buraco da fechadura. O videoclipe continua a passar enquanto eu aceno para a cativa da passagem que faz um strip-tease, antes que a abolição dos sentidos liberte todos os meus desejos escravizados no corpo dócil da complacência. Os botões e as teclas não me obedecem e você fala como um alucinado na frente da câmera manipulada pela voz de uma mulher modulada pelo desejo.
As tuas mãos falam e gesticulam uma insanidade que se esconde nos bolsos da camisa e da calça. Fazem desaparecer, como se pertencessem a um ilusionista, a timidez e o temor que se escondem entre as pernas enquanto produzem uma sonora ereção.
Eu te vejo mágico de si mesmo a se reinventar no discurso que como um álibi é declamado no púlpito para redenção dos infiéis ao pensamento livre, os anônimos e encarcerados prisioneiros do FUI.
O videoclipe frita meu pensamento, como uma frigideira num forno de microondas, calcina sem deixar vestígios e meus olhos ficam estatelados como duas gemas esverdeadas fixadas morbidamente nas imagens que as palavras projetam na tela líquida da minha pele. Redescubro o tempo perdido que a tua lembrança acendeu em mim.
Os botões e as teclas não me obedecem e neste momento tento desabotoá-los para te despistar da repetição. Mas o desejo é vão.
O devir das tuas palavras, como uma cabeça d’água me inebria e afoga, me arrebata na corredeira fatal da retórica, me embebeda de alucinações sujas e me cobre com a mortalha dos versos de amor que o tempo usurpou, como se fossem proibidos, como se não fossem meus, como se fosse eu a ladra do teu coração.
Eu em modo random me repito aleatória na tua frente e fico rubra de vergonha quando teu olhar atento esquarteja a fragilidade do meu delicado gesto de adeus enquanto desligo o celular.