quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Padre ou vigário?

A vida é um livro recheado de palavras que você passa pela cara como todas as mulheres que amou nas impossíveis prostitutas sagradas do teu pai. É um livro que releio. Ao terminar a última linha tenho a sensação de que o filme acabou. Levanto-me sentido os olhos arderem como quando saio da zona do escuro para o claro.  As impressões sobre a membrana dos afetos são frescas. E um silêncio de quem digere amordaça a minha boca para não gritar ou vomitar.
Costuro os olhos para ver se não choro. Na verdade não tenho vontade de chorar. O filme acabou. Me dou conta de que fiquei apegada ao personagem principal (porque tinha boa pegada). Andei com ele quadro a quadro na velocidade de cada cena, me arrisquei na cidade de deus, vaguei e vacilei de pau duro pela vila mimosa, senti medo e enfrentei o vazio centro da cidade, investi contra os travestis meu desejo e hesitação como se estivesse colada ao seu corpo. Fui feliz e chorei em cada encontro desperdiçado pela vontade insana de viver. Os seus olhos eram meus e as palavras que dizia pareciam ter sido escritas por mim. Eu podia ter vivido cada uma daquelas cenas que o personagem interpretava como se fosse um documentário. Etnografia da alma gêmea incorpórea que nos unia e separava. De tela líquida à poltrona aveludada as palavras impressas no papel couche 120 gramas tramavam  e traíam o segredo da exposição obscena.  Entre desvios e a deriva do vício de desperdiçar o amor.
As dores, os ódios, as descrenças, as fugas, os limites, a violência me atravessavam como agulhas infectadas pelo teu vírus mortal. Eu produzia um filme que rodava de trás para  frente. O livro foi a primeira pista a que tive acesso antes de me aproximar e atravessar o espelho como uma Alice desatinada. Naquele tempo eu o li com a distração necessária para me aventurar em você. Eu não reparei nas sinalizações da estrada, postadas no meio fio do abismo, na verdade eu passei batida por elas, com o descuido juvenil necessário às grandes paixões. Passados dois anos da separação releio o livro e revejo em slow motion tudo o que me foi contado a boca pequena escrito em alto e bom som, em cada entre linha que a escrita atirava contra mim, assassinando a ficção e deixando apenas os despojos da realidade rasgada por dois fios, o da seda e o da navalha.
É inacreditável e irreal como um filme. Tempo mítico circular que apenas os deuses conhecem e desfrutam. O fim está para sempre prisioneiro da passagem para o começo. Cometo o crime da infâmia de uma releitura que te me devolve mais real que o rei da zona. Imagino onde eu seria guardada no relicário daquela memória, escrita sem pudor ou vergonha, se seria nomeada como os mais queridos e respeitados, ou se apareceria anônima como aqueles que o rancor roubou o rosto, borrou a identidade, calou a descrição para que não fossem reconhecidos. Uma estranha ética que não poupava detalhes, mas nomes. Que nomeava a dor, mas ocultava o algoz. Para que a vergonha ou o que quer que as palavras despertassem como sentimento, pudesse ser experimentado solitária e anonimamente, como devem ser os grandes crimes.
Onde ficaria a minha delicadeza rara que na epígrafe escolhida de Rimbaud é a causa da vida perdida? Eu que no namoro com a morte descobri minha paixão pelo risco, meu desejo inconfesso de não me proteger, não porque uma perversa baixa estima me consumisse, mas porque ao contrário, eu me sentia como uma deusa grega neste mundo das imperfeições humanas demais. Vontade de ser anjo caído e rastejar inumana entre os dejetos mais puros da existência banal e infame a qual eu estava para sempre condenada. Talvez como você. Talvez não.
O livro que escrevo vai revelar um dia, de forma analógica, em papel brilhante, sem margens e com altos contrastes as queridas diferenças e singularidades que nos unem após a separação. O incestuoso casamento de almas irmãs que afrontou a moral e os bons costumes de nossas inquietas e inexatas existências. As proibições que alegremente violamos como dois adolescentes que desconheciam o tempo e a decomposição dos cadáveres não embalsamados pela história. Que se inebriavam dos cheiros com que a irreverência perfumava seus corpos e almas. Que se feriram para sempre com o fio de seda da navalha do perene, do que passa, do que acaba.

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